“Ser sempre um aprendiz”
Delfin é do tipo que busca o pertinente, mas fugindo do óbvio – como abrir mão do sobrenome em um mundo de sobrenomes e marcas. Um professor com desejo de aprender.
E não é que Delfin tem mesmo a coragem de dar a cara… a muitos e muitos livros editados no país? Mais: ainda mostra o caminho! Ele é um dos professores da LabPub, com a responsabilidade não só de falar da cara dos livros, mas do corpo – por que não? – que também dão alma aos livros. O fundador do Sudio DelRey é um agregador de histórias e tendências: conhece profundamente a história do design e está sempre antenado nas novidades. Mas o melhor é bater um papo com ele. E aqui vai:
LabPub – Conte um momento de sua vida profissional em que sente que foi corajoso.
Delfin – Olha, acho que eu não poderia pegar nenhum diferente da decisão de abrir o Studio DelRey, dez anos atrás. Eu estava no seguinte dilema: aceitar um posto de editor numa editora paulistana, algum tempo depois de minha saída da Aleph, ou abrir meu próprio negócio. Na época, eu tinha feito o cadastro de autônomo na prefeitura de minha cidade, Campinas, e começado a produzir algumas capas para editoras, notadamente a Saraiva em sua linha jurídica. O que pesou mais para mim, na época, foi o meu desgaste excessivo com o deslocamento para a capital, diariamente. Morar em São Paulo era inviável, o fretado passava na frente do meu apartamento próprio, mas o posto de trabalho exigiria que eu ficasse cerca de seis horas diárias no trânsito, em ônibus e vans. Isso é surreal. Então, mesmo com todas as incertezas possíveis, mas confiando na qualidade do meu trabalho, decidi abrir mão de um salário fixo em nome da aposta em um projeto autoral, no qual eu tivesse, entre outras vantagens, uma melhor gestão do meu tempo de trabalho e do meu período de descanso. Notadamente esta última vantagem foi decisiva. Não foi um céu de brigadeiro o tempo todo (que profissional autônomo tem isso no Brasil?), mas é uma viagem que tem me dado muitas alegrias e isso me deixa bastante satisfeito.
LabPub – Você se apresenta como Delfin. É seu nome de batismo? Pode contar sobre essa escolha?
Delfin – A coisa que eu acho mais engraçado desta pergunta, que é recorrente, é que ela encobre uma escolha muito maior: por que raios eu não utilizo sobrenome? E essa sim é uma história interessante. Vamos lá: eu não apenas nasci e cresci no interior de São Paulo, mas fiz isso numa cidade que se considera uma espécie de capital desse interior. Neste lugar, bastante conservador e com uma elite velhaca, que ainda vive de uma glória apodrecida que vem do tempo dos barões do café e das fazendas escravagistas (Campinas foi a última cidade do Brasil a abolir a escravatura), o uso do sobrenome é intenso. Desde as mais deslavadas carteiradas a negociatas entre famílias centenárias, quem não possui um sobrenome conhecido é relegado a uma posição secundária. Parece ficção científica, isso de castas baseadas em hereditariedade, não é mesmo? Mas é algo baseado em realidades como a que existe em Campinas. Pois quando eu fazia cursinho no saudoso Anglo Campinas e estava produzindo meu primeiro fanzine, tive uma epifania após uma aula com um professor que se tornou um de meus amigos mais queridos, o Severino Antônio: eu não assinaria profissionalmente com um sobrenome, jamais. Alguns amigos da época tentaram me dissuadir, alguns chegaram a sugerir sobrenomes-fantasia (o que eu me recordo mais é Delfin Serifa, dado por um amigo em uma carona para a casa dos meus pais). Eu no fim achei que era uma solução pobre, pois implicava em eu ter um sobrenome. Decisão tomada, pensei que seria muito difícil colocá-la em prática. Mas, na verdade, em absolutamente todos os veículos de comunicação para os quais trabalhei, frilei ou colaborei, isso jamais foi questionado. Foi uma escolha profissional da qual nunca me arrependi, apesar de eu ouvir de amigos como o Daniel Pellizzari ou o André Conti que eu deveria, sim, usar o sobrenome, que é um sobrenome forte. Mas é uma decisão política, contra um pensamento reinante, conservador, e isso me traz muita paz, na verdade.
LabPub – Desenhar bem é uma condição para ser designer? Ou uma coisa não tem nada a ver com a outra necessariamente? Quais são os atributos mais necessários a um designer de livros?
Delfin – Desenhar bem não é uma condição, não. Mas é importante saber desenhar, estudar desenho, ter referências relativas a ilustração e desenho, ilustradores e desenhistas, bem como pintores e outros artistas gráficos, inclusive (é claro) outros designers, não apenas gráficos. Isso é importante porque é o acúmulo de referências e informações que vão se acumular e criar seu repertório, para que ele possa ser aplicado praticamente, materializado em uma arte visual. Quanto aos atributos mais necessários: além dos técnicos (porque as editoras precisam de capas tecnicamente precisas), para mim a mais importante é a capacidade de conexão entre as diversas referências do designer é o mais importante, pois isso mostra o tamanho e a profundidade da cartola de onde o designer pode tirar um coelho inusitado. Fazer com que o cliente receba um trabalho pertinente ao briefing sem ser óbvio e, ao mesmo tempo, sendo belo e impactante é uma das metas que almejo em cada trabalho no Studio DelRey. Inclusive, usar o conhecimento técnico a favor da criação, pervertendo alguns parâmetros e fazendo com que o livro funcione ainda assim, é uma arte. Conhecer as regras e saber como quebrá-las, outro atributo que pode diferenciar para melhor (para mim, diferencia mesmo) um designer bom de um grande designer. E, claro, não se esquecer das lições dos gigantes do passado e dos seus contemporâneos, sempre que possível mirando o que ainda será. É difícil e implica em nunca se considerar um especialista em nada, ser sempre um aprendiz. Sempre há algo novo a aprender e a consciência de que nunca se será o melhor em tudo é, para mim, um incentivo para sempre almejar um degrau a mais nessa escada bastante longa do aprendizado profissional. Veja o Hayao Miyazaki, por exemplo: em plena pandemia, ele está fazendo um minuto por mês de animação em 2D, sozinho, porque com tudo o que ele aprendeu na vida, após décadas de Studio Ghibli, ele pode voltar às origens para produzir algo novo e inesperado. Importa se você tem 20 ou 80 anos de idade? Apenas no fator experiência: ousar um passo é sempre o melhor passo.