O lado avesso da tradução
Não faz muito tempo, descobri um livrinho valioso do Paulo Rónai, tradutor, professor de línguas, crítico, ensaísta, chamado Como aprendi o português e outras aventuras, e me deparei com uma reflexão que representa bem os desafios da tradução e, especialmente, da tradução literária.
Ele mencionava que, ao aprender o português, se viu com a dificuldade de traduzir a palavra “dezembro”. Embora em húngaro, sua língua materna, houvesse palavra com grafia semelhante e significado idêntico, december, Rónai julgava impossível transmitir toda a carga de um Natal carioca, “tórrido e abafado”, a um leitor húngaro, que associava a palavra “dezembro” a gelo, neve, miséria.
E eu concordo (claro, não com a parte do húngaro, idioma que obviamente desconheço), pois mesmo quando a tradução literal parece correta, ela pode carregar nuances de sentido que nos forçam a usar a criatividade para transmitir a mesma mensagem com palavras diferentes. É uma eterna busca pela compreensão do sentido e pelas palavras perfeitas.
Sem contar que quem traduz está sempre pensando em tradução, enxergando detalhes, procurando o que está além do apenas aparente, tentando decifrar o lado avesso…
E aí vem a pergunta de um milhão de dólares: no cotejo entre um original e uma tradução, principalmente de textos mais sofisticados, por que às vezes nos deparamos com traduções que parecem tão distantes do original, quase paráfrases, com falta de fidelidade ao estilo, ainda que a mensagem não esteja necessariamente incorreta?
Buscando essa resposta, acabei encontrando o conceito de close reading, ou “leitura atenta”, o exercício de fazer diferentes leituras buscando esmiuçar um texto, analisar as palavras utilizadas, as sutilezas de sentido, as camadas de significado que cada elemento apresenta, as qualidades estilísticas, os recursos empregados pelo autor. Parece óbvio? Mas acredite, isso muda tudo. Sem uma leitura minuciosa, é impossível produzir uma tradução fiel.
Alguns textos são mais diretos, mais objetivos, se mostram para nós como são. Alguns livros de entretenimento se encaixam nessa categoria: estão mais comprometidos com envolver o leitor na trama do que com suscitar reflexões mais profundas. E não tem problema algum! Aqui o forte é o tradutor se manter fiel ao original pensando no que é mais natural no nosso idioma, em encontrar equivalências que soem bem em português, que sejam fluentes a ponto de o leitor embarcar em uma leitura gostosa e envolvente, que é o que o autor pretendia ao escrever esse livro no idioma original.
Em alguns livros, porém, o autor se dedicou a trabalhar mais a linguagem, a trabalhar mais nas entrelinhas, a burilar o texto de tal forma que conseguisse imprimir nele uma série de outras referências, de outros recursos textuais, de metáforas, de imagens sofisticadas, que precisarão ser desvendadas pouco a pouco. Certamente esse tipo de textos exigirá mais do leitor – um outro tipo de fruição — e, para fazer jus a esse original, a habilidade de leitura profunda do tradutor será inestimável para não cair nas armadilhas do que está apenas na superfície e não correr o risco de criar para o leitor da tradução algo que seja apenas uma sombra do original.
Os dois tipos de texto têm seu valor e seu lugar no mercado e os dois vão se beneficiar de uma boa close reading do tradutor. A chave que o tradutor iniciante pode estar procurando, sem saber o que fazer para melhorar seu texto, é que a forma como se diz é tão importante quanto o quê se diz. Sem esse exercício (que não é simples!) de se colocar na voz e na dicção do autor, o tradutor estará sempre produzindo meras paráfrases.
Referências:
PROSE, Francini. Para ler como um escritor: Um guia para quem gosta de livros e para quem quer escrevê-los. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
RÓNAI, Paulo. Como aprendi o português e outras aventuras. Rio de Janeiro: Edições de Janeiro, 2014.
Monique D’Orazio é tradutora de inglês e de espanhol para o português desde 2007 e traduz especificamente livros desde 2013, em gêneros como ficção, não ficção, clássicos, literatura infantil e juvenil, para editoras como Verus, Ciranda Cultural, HarperCollins Brasil, Faro Editorial, entre outras. É Bacharel em Relações Internacionais (IRI-USP, 2009), tem MBA em Book Publishing (2016) e cursa pós-graduação em revisão de textos. Tem mais de 140 livros traduzidos, dos quais 80 só infantis, e dezenas de outros revisados e preparados. Na LabPub, ministra os cursos Formação de Tradutor de Livros, Real Job – Revisor de textos e Real Job – Tradutor editorial.