LENNON, 80 ANOS: CELEBRAMOS A DATA COM UM FÃ DOS BEATLES NO MUNDO DO LIVRO
Conversamos com Fernando Nuno, que foi editor do lendário Círculo do Livro, (Abril), é também músico, além de grande fã e conhecedor dos Beatles.
Fernando Nuno fala de Dostoiévski, de Shakespeare, de Drummond ou Clarice Lispector com o mesmo domínio com que toca e canta músicas dos Beatles. Nome histórico e em plena atividade do mercado editorial brasileiro, ele ajudou a formar milhares de leitores no país por meio do Círculo do Livro, do Grupo Abril. Eis como se pode juntar qualidade artística e multidões, tanto pelas letras quanto pela música.
John Lennon faria 80 anos neste 9 de outubro. Em dezembro seu assassinato completa 40 anos. Se não deixamos nenhum dia de lamentar sua falta ou de celebrar sua vida, essas datas que chamamos de “redondas” nos dão a chance de tratar publicamente da história dos grandes nomes da cultura mundial.
LabPub — A força das mensagens de Lennon, tanto de paz quanto de indignação, seriam mais potentes hoje em dia se ele estivesse completando, vivo, seus 80 anos? Você diria que algo seria diferente no mundo?
Fernando Nuno — Olha, André, sei lá. É um belo exercício do que eu chamaria de ‘passadologia futura’ ou ‘futurologia do passado’. Lennon era muito volúvel, não dá para saber exatamente o que ele estaria defendendo hoje. Mas havia, digamos, uma linha-mestra — ou, melhor ainda, linhas de força — nas convicções dele que talvez resistissem aos testes e às vicissitudes do tempo, permitindo que nós aqui exercitemos a imaginação.
Embora tenha dito que desejava ser autor de livros para crianças na velhice, John provavelmente manteria o foco na música.
As lutas políticas em que se envolveria teriam declinado nas décadas anteriores a esta em favor de uma luta mais ligada ao verde, à preservação da natureza. No entanto, a emergência de Trump, com seus inúmeros apoiadores (que certamente repetem e desejam ver certificada legalmente a burla dos impostos, em especial o de renda — o que até me leva a evocar ‘Taxman’, de Harrison, ainda que em outro contexto), levaria Lennon a, lembrando-se da perseguição que lhe moveu Richard Nixon (e vendo naquele período semelhanças com o atual), reacender a disposição para a luta menos concentrada e mais difusamente política. O surgimento, em vários países, de arremedos de Trump que agudizam o atraso ao endossar a queima do planeta em troca de um ganho monetário um tanto limitado na dimensão física e no tempo levaria John a compor músicas (ou ‘escrever canções’, como se diz em inglês) mais candentes e a se sair com opiniões em público mais desafiadoras sobre esses novos pretensos líderes. Talvez chegasse a pagar alguma versão moderna e informatizada (além da tradicional forma física e visualmente imediata no palco das cidades) de sua ação com Yoko nos outdoors ‘war is over, if you want it’ no início dos anos 1970.
LabPub — O que significa esse nome para você: John Lennon? Há na literatura autores ou autoras que podem ser comparados a ele, pela influência cultural?
Fernando Nuno — Há alguns anos, a mulher que compartilha comigo os ardores e as ardências da vida e da pandemia, Silvana, disse que a única vez que me viu chorar foi quando recebi a notícia da morte de John. Não me lembro disso, mas com certeza ela está certa. Em compensação, depois que a Nana me contou essa lembrança passei a chorar mais facilmente com filmes, livros e fatos da vida real que revelam supremas injustiças. Claro que se você fala em influenciadores culturais temos de pensar em quais são os influenciados culturalmente.
E, em termos de influência cultural, que se compare a Lennon no Brasil, me ocorrem, de imediato, Chico Buarque (de quem eu disse, no dia em que saiu o Nobel para Dylan, ser mais merecedor do prêmio que o vate americano, por comparação não só dos conteúdos mas também do teor poético) e Caetano Veloso, ambos quando se lembre a amplitude de sua influência — hoje um tanto relimitada por incompreensões e destolerâncias que revelam quanto essa influência mais ampla se devia em parte a gadismo de gente que apenas seguia modismo e não se dava realmente conta dos conteúdos trabalhados por esses dois imensos artistas (vide a inflação de gente que nunca havia lido um livro — nem pretendia ler —, na Flip, no ano em que Chico Buarque foi palestrante).
Veja que citei não exatamente dois literatos, dois ‘autores’, mas dois criadores que ligam música e texto como Lennon e em nível poético até superior ao dele (embora, na variedade e no esplendor das melodias, muitas vezes ajudadas pelos arranjos, Lennon esteja um pouquinho acima, no patamar de McCarney, Rogers & Hart, Gershwin e outros). Em âmbito mundial, o expoente nessa seara ainda é, com certeza, Dylan, embora a necessidade do domínio do teor poético da língua inglesa limite um pouco seu alcance no mundo. Claro que o mesmo ocorre com nossos criadores em língua portuguesa; repetindo: por isso foi Dylan e não Chico quem levou o supracitado ‘galardão’.
Autores de influência mais ampla? Aí muda bastante o teor dos influenciados. Para citar os de influência mais universal, e com certeza vou deixar escapar alguém muito importante numa resposta em tão pouco tempo e portanto meio irrefletida, temos os grandes: os quase antípodas politicamente Tolstói e Dostoiévski. Em ambientes mais localizados, cada qual num setor bem amplo: Machado, Zola, Proust, Kafka, Salinger, além de grandes estilistas que tiveram influência geral sem deixar de ser específicos, como Monteiro Lobato no Brasil. Entre os pensadores sem ficção (embora em vários casos com, voluntária ou não), a lista seria enorme, mas Wittgenstein, Simone de Beauvoir, Sartre… Claro que hoje há influenciadores culturais de alcance temporal mais limitado, que têm milhões de seguidores e bilhões de visualizações e amanhã ter ã ; o a morte noticiada como a do ‘famosíssimo artista e ou influenciador do qual nós, da imprensa, nunca ouvimos falar’, e que, portanto, não ocorre citar aqui — no mínimo, por desconhecimento deste escrevinhador. Com o politicamente correto em pauta, também saltam para a luz dos holofotes muitos influenciadores de pouca densidade. Eu diria que o politicamente correto era necessário para evoluirmos eticamente, mas é preciso relembrar o dito de que não se cria, inventa ou promove cultura de qualidade apenas com base nas boas intenções. Ah, e Mozart ainda é pop. E Clarice Lispector e Lygia, que embora amicíssimas apontavam direções opostas que se ligam no infinito.
Fechando, mais dois nomes, de autores de ficção muito influentes culturalmente em setores e épocas determinados e delimitados: Herman Hesse e Paulo Coelho (este, influente em especial nas esferas de poder das nações consideradas mais desenvolvidas).
Bom, André, é o que eu tinha por hoje, assim de bate-pronto. Se você me fizesse a mesma pergunta amanhã (e por gentileza, ainda mais sabendo como você é extremamente gentil, não faça isso), a resposta seria outra, embora a mesma na essência. O mesmo vale para depois de amanhã. E assim por diante.
Sobre as fotos: Na primeira, o editor faz o que também ama além de criar livros — seja editando, traduzindo ou escrevendo suas próprias histórias. Na segunda, ele conta que eram os anos 1980, um Natal no Círculo do Livro, com Moacir Ermel, que foi o baixista da montagem original do Hair no Brasil, e Renê Santos, então superintendente do Círculo, na bateria. “Fora da foto está o magnífico amigo Heitor Paixão, na segunda voz, que depois foi ser diretor de marketing na Editora Globo”.