Jornal Rascunho faz 20 anos
Enquanto os antigos e celebrados suplementos literários minguaram na grande Imprensa, o Rascunho resiste, mantendo a independência como norte. Rogério Pereira, o fundador, conta como foi.
Jornalista de formação, Rogério Pereira é escritor. Suas crônicas são destaque das edições de Rascunho, o jornal que ele criou 20 anos atrás, em Curitiba, no Paraná, e se tornou rapidamente uma das principais referências da crítica literária do país. Na época, os grandes jornais brasileiros ainda mantinham espaço regular e de prestígio em suas edições. Esse espaço encolheu-se (foi encolhido, para ser mais preciso). Divulgação de obras e autores e a crítica especializada não acadêmica se pulverizaram pela internet, em intensidade e escolhas bem diferentes. Mas cabe tudo, cabem todos. E o jornal resistiu às forças de exclusão. O espírito desse veículo, que ao longo do tempo publicou iniciantes e consagrados, está bem definido pela entrevista que se segue, com o próprio fundador, Rogério Pereira. Mas tirem as crianças da sala.
LabPub — Que importância você almejava para o Rascunho 20 anos atrás? E como avalia a importância do jornal hoje?
Rogério Pereira — Na juventude, almejam-se grandezas absolutamente épicas. Em 8 de abril de 2000, quando o número zero do Rascunho foi impresso, com suas mirradas oito páginas, eu arrastava sonhos e projetos megalomaníacos. Na verdade, ainda os tenho, mesmo com a velhice arranhando a porta da sala. Ao juntar um pequeno grupo de amigos e fundar o Rascunho, admirei a pradaria da província e escrevi a lápis num papel, hoje perdido numa gaveta qualquer: “o Rascunho será um amplo palco democrático, para discutir e fortalecer a literatura”. E, claro, sobreviver pelo menos umas cinco edições. Éramos meia dúzia de sonhadores. Hoje, 20 anos após aquele encontro numa mesa sebosa de bar, o Rascunho segue com a mesma gana: “ser um amplo palco à literatura”. Temos centenas de colaboradores, 243 edições (até a de julho) e milhares de leitores espalhados pelo mundo. Mas parece uma tarefa egocêntrica, cabotina, avaliar a importância do Rascunho atualmente. Tenho certeza de que continua sendo importante para a literatura, um espaço generoso (mesmo quando as críticas são negativas) para que a literatura dilate a consciência dos leitores e deste Brasil tão arredio à leitura. Muita coisa mudou: as redes sociais tentam nos sufocar e nos convencer de que somos todos felizes, o mercado editorial se profissionalizou, as livrarias de rua praticamente desapareceram, as mulheres deixaram de usar topete, os homens tentam ser menos brutos, as galinhas põem ovos livres de gaiolas, os bois são mortos com mais piedade, os idiotas continuam a nos governar, mas o Rascunho talvez ainda mantenha o sonho de sua gênese: “ser o jornal de literatura do Brasil”, mesmo que a literatura seja tão desprezada num país que a cada dia se descobre menos afeito a gentilezas.
LabPub — Sendo um veículo jornalístico, como é a relação do Rascunho com o mercado editorial? A liberdade de imprensa é sempre bem compreendida pelas empresas do mundo do livro?
Rogério Pereira — É uma relação bastante profissional e cordial. A liberdade de opinião é bem compreendida pelas assessorias e editores. O Rascunho sempre foi honesto na avaliação dos livros, mesmo numa fase mais bruta, mais aferrada a ideias combativas, numa época mais juvenil. Isso nos trouxe, acredito, credibilidade. Além disso, entre os colaboradores estão nomes importantes do jornalismo e da literatura. O problema não é com as editoras, mas com os escritores. Após críticas negativas, já recebi ameaças, xingamentos. Até minha mãe, que era quase analfabeta, foi duramente ofendida. É claro que nunca lhe contei nada. Ela morreu, corroída pelo câncer, sem saber que alguns autores achavam que seu filho era um grande filho da puta.
LabPub — Lembre por favor de três grandes momentos da história do jornal, pela participação de autores consagrados ou por polêmicas, denúncias, congratulações, enfim, o que mais te marcou.
Rogério Pereira — É muita coisa. O Rascunho teve fases distintas: a mais lembrada é a dos primeiros anos, quando a ferocidade juvenil era uma das marcas. Tivemos algumas capas avacalhando (talvez seja a palavra ideal) alguns nomes consagrados da literatura brasileira. Hoje, ao olhar para esta fase, não me arrependo, tampouco acho um equívoco. Aquela fase faz parte da história de construção do Rascunho. Quem nunca chegou bêbado e vomitou abraçado ao vaso sanitário, como se fosse a cruz a nos salvar de todos os pecados da carne? Mas teve uma capa que causou furor Brasil afora, logo nas primeiras edições. E um grupo de intelectuais assinou uma espécie de abaixo-assinado no caderno Ideias, do Jornal do Brasil, pelo fim (ou espécie de censura) do Rascunho. Eu li, fui pra casa e contei o fato pra minha mãe. Ela tirou a dentadura e me disse de costas, mexendo a comida no fogão a lenha: “Não entendo nada disso. Mas não ligue”. Segui o conselho. O caderno Ideias acabou. O Jornal do Brasil acabou. Muitos dos que assinaram o manifesto, hoje escrevem no Rascunho. Minha morreu, mas tinha razão. Há muitos outros momentos importantes na história do Rascunho, mas agora preciso fazer um chimarrão para esquentar as tripas. E tomar o meu remédio para a artrose, o reumatismo e a pressão. Foi um prazer.