Jabuti 2019
Por André Argolo
O povo do livro já tem um charme usual no dia a dia. Em noite de festa, capricha. Forma&Conteúdo. Esse mundo, esse campo, esse cercado, esse agrupamento (como definir?) tem isso nos olhos em tudo o que faz. Fim de tarde chuvosa em São Paulo, 28 de novembro. Estaria essa gente do livro terminando de se arrumar ou já no caminho do Auditório Ibirapuera, presa no trânsito cerrado, lento, muito lento dessa quinta-feira? Noite de Prêmio Jabuti. Abotoam-se, terminam maquiagem, dirigem ou pedem transporte pelo celular os já vencedores por estar entre os cinco finalistas, que só na cerimônia iriam saber se acordariam em plena black friday com um jabutizinho de metal todo bons dias pra chamar de seu, esperando carinhos na estante. Preparam-se os que vivenciariam isso e os que celebrariam os ganhadores. Helicópteros sobre o Parque Ibirapuera. Mas eram para o velório de Gugu Liberato, na Assembleia Legislativa, ali em frente. Em terra, a fiel TV Cultura voltava suas lentes e microfones também para o mundo do livro. Duas equipes de reportagem. Tudo ali também seria transmitido ao vivo pela internet.
O Jabuti, para surpresa das lebres, nos últimos três anos se tornou mais ágil. Ágil no limite. No limite dos discursos iniciais. Mas sem dúvida mais ágil, mais atraente, mais espetáculo, Forma&Conteúdo, como é próprio das preocupações do mundo do livro. Show apresentado por quem sabe fazer: o ator Lázaro Ramos. Também autor, também entrevistador, homem negro, preocupado com os problemas da gente negra no Brasil. Escolha da curadoria do Jabuti que, ao contrário das fantasias governamento-federais do momento, declarou essa aproximação com a causa, buscando respeitar lugar de fala, dar voz, equilíbrio. E reconhecimento. O prêmio especial Personalidade Literária, depois ou ao lado de Lygia Fagundes Telles, de Ruth Rocha, de Thiago de Mello nos anos anteriores, foi entregue à autora de prosa e poema, professora e pesquisadora universitária Conceição Evaristo, mulher negra, das causas das pessoas negras no Brasil, criadora de obra importante para a literatura brasileira, para a humanidade em qualquer lugar do planeta (é esse o tamanho, que não nos esqueçamos). Lindo o momento da homenagem, mais ao fim da cerimônia, com Lázaro Ramos descendo do palco para ter nas mãos as mãos de Conceição e dizer nos olhos dela o quanto seus textos e sua existência eram significativas para a dele.
Gostoso ir colando selos dos premiados no catálogo bonito dos vencedores. O lúdico é parte da coisa. A música é parte de tudo. Fabiana Cozza no palco, duas vezes, qualidade acima da fama.
Os vencedores de cada categoria podem ser vistos no site do Prêmio Jabuti da CBL. Aqui, curtos destaques: Lúcia Hiratsuka ganhou dois jabutis na noite! Escritora (em prosa e poesia) e ilustradora (sempre de efeito poético), foi premiada pelas duas habilidades: na categoria Juvenil por Histórias guardadas pelo rio (Edições SM) e na categoria Ilustração por Chão de peixes (Pequena Zahar). “Não esperava”, disse ela depois, ao pé da rampa de Niemayer e sob as línguas de Tomie Ohtake. O premiadíssimo Roger Mello concorria com dois livros, Clarice (Global Editora) e Enreduana (Companhia das Letrinhas). Clarice, escrito mas não ilustrado por ele e sim por Felipe Cavalcante, ganhou em Projeto Gráfico, do próprio Felipe.
A noite que valorizava principalmente as mãos e mentes de artistas negros, iluminando o racismo teimoso, criminoso, que se arrasta no país, acabou premiando como Livro do Ano um estudo sobre a desigualdade. Fruto de tese de doutorado, Uma história da desigualdade: A concentração de renda entre os ricos no Brasil 1926 – 2013 (Anpocs/ Hucitec), de Pedro H. G. Ferreira de Souza, vencedor da categoria Humanidades, passa para a história como o grande vencedor do ano no Jabuti em 2019 (ano em que a desigualdade tem jeito de concreto impenetrável).
O mais próximo de uma vaia que houve na noite foram os poucos e curtos aplausos para a subida ao palco do representante do governador de São Paulo, João Dória. Sérgio Sá Leitão, secretário de Cultura do Estado, foi um dos que leram discursos no início. Entre números e feitos, lembrou dos vencedores do Prêmio São Paulo de Literatura – um deles, Tiago Ferro, também ganhador do Jabuti na categoria Romance por O pai da menina morta (Todavia), e Ana Paula Maia, que também concorria na categoria com Enterre seus mortos (Companhia das Letras). Ele também revelou o que é a literatura para o atual governo estadual. Quando falou dos mais de 50 milhões de reais destinados ao PROAC desse ano, comemorou os 4 milhões para a literatura. Menos de 10%, se não me engano na conta. Eis o tamanho da importância.
Pedro Almeida fez o discurso menos lido, mais engajado e empolgado, celebrando as recentes mudanças no prêmio (que criou eixos, passou a escolher cinco finalistas e anunciar vencedores somente na noite de entrega, entre outras) e principalmente a presença ali de Conceição Evaristo, o que, aqueles e aquelas que representa.
O Jabuti, aos 61 anos, pula buraquinhos numa boa e é mais ágil do que nunca, eis o que interessa.