Fantasmas da vida
Faz um mês que estou aqui. E não houve uma única noite em que não acordei de madrugada. Nem mesmo os comprimidos me ajudam. Gosto de acreditar que é por causa do inverno, que é muito intenso aqui e me dá arrepios, e dos ventos fortes, que só contribuem para a insônia e para a imaginação, e que logo tudo vai passar.
Antes que meus pensamentos comecem a vagar livremente, vou até a janela. Não há muito para se ver às três da madrugada, apenas as mesmas ruas mal-iluminadas e as árvores, agora esbranquiçadas, mas hoje reparo em algo mais que me dá calafrios: um vulto imóvel do outro lado da rua. Parece o Luiz, meu falecido ex-chefe.
Mudei para cá logo após a morte dele. Simplesmente larguei tudo, abandonei o emprego que odiava, saí de casa e vim. Como eu gostaria de ter tido coragem de fazer isso antes! Olho pela janela novamente e o vulto não está mais lá.
Para me acalmar e me aquecer, vou até a cozinha preparar um chá. O barulho irritante da chaleira me lembra do Luiz e de como ele bufava toda vez que falava comigo. E de como não bufou na última vez em que o vi no carro dele. Tento afastar esses pensamentos enquanto adoço o chá.
Ao me virar, a xícara fumegante escapa de minha mão. Não ouço o estrondo dela se partindo, nem sinto o chá queimando meu pé envolto em meias grossas. Minha atenção está toda na figura à frente. É Luiz, branco como a geada lá fora, com uma mancha vermelha no peito. Lembro daquela mancha surgindo vagarosamente enquanto eu enfiava uma faca através da carne dele e da expressão de surpresa quando ele percebeu que eu não iria mais obedecê-lo.
Ele se aproxima em silêncio. Dou alguns passos para trás até encostar na pia e tateio às cegas até sentir o cabo de uma longa faca afiada. Sem pensar, repito a cena daquela noite, mas desta vez não há sangue escorrendo, nem gemidos, nem desespero de fugir dali para não ser descoberta. Uma calma toma conta de mim quando encaro aqueles olhos semitransparentes e percebo que ele já não pode fazer nada. Eu venci. Aos poucos, o fantasma desaparece diante de meus olhos e me vejo sozinha na cozinha no meio da madrugada já não tão fria.
Ana Rizzi