Aprimorar sempre, desapaixonar jamais
A editora e escritora Dulce Seabra andava pelas artes visuais, mas aí o meio editorial se mostrou irresistível. Aos iniciantes ela dá dicas e recorre a Camões para inspirar.
Você precisa ver a empolgação de Dulce Seabra, tratando dos livros de Roger Mello, autor brasileiro dos mais reconhecidos internacionalmente (ganhador do Hans Christian Andersen de 2014). Atenções mútuas sobre escritos e ilustrações – que juntos são o texto, nem um nem outro com maior importância. Cantam, têm ideias, melhoram o que vai chegar ao leitor. A cena foi presenciada na sala que ocupava na Global Editora, mas, pelo que consta, foi sempre assim, por onde passou: Edições SM, Escrituras, Ave-Maria, Scipione etc. Dulce valoriza ao máximo o contato próximo com autores, um valor no meio editorial que as tarefas do dia a dia devem contemplar, não engolir, e traz grandes resultados. Ela própria é autora dos livros infantis Curumim Abaré imitando os animais e Tem gente que acredita. E você?, da Cortez Editora. Na entrevista, Dulce conta quem ganha o cabo de guerra entre a autora e a editora dentro dela mesma e se dedica a falar diretamente a quem está entrando neste nosso mundo da produção editorial.
LabPub – Como foi seu início no meio editorial? Lembra como pintou essa opção de trabalho para você?
Dulce Seabra – Eu ainda fazia faculdade em Portugal quando tive a oportunidade de passar alguns meses no Brasil e conhecer a rotina de uma editora, pois tanto meu pai como meus irmãos trabalhavam nessa área. De volta a Lisboa, após várias tentativas com contatos nem sempre próximos, consegui conhecer a rotina de uma redação de jornal, não era remunerado, mas tratava-se de uma chance única proporcionada a uma jovem curiosa. Formei-me em Educação pela Arte, fui dar aulas, passei a cursar Design. E foi quando resolvi mudar para o Brasil.
Ao procurar emprego para me manter nessa nova realidade, acabei ingressando numa editora. Eu pretendia trabalhar com a parte visual, no entanto fui logo captada para o texto, pois viram que eu tinha facilidade para esse tipo de trabalho. Tive muita sorte, pois pude aprender com profissionais das antigas, que se dispunham a transmitir seu conhecimento e ainda me desafiavam a voar sozinha, me dando responsabilidades que eu nem sabia que estaria pronta para assumir.
LabPub – A autora e a editora na mesma pessoa, digamos, se dão bem ou brigam de vez em quando por tempo e espaço?
Dulce Seabra – O fato de ser editora me torna muito crítica em relação ao texto, e isso acaba interferindo, até podando, a minha criatividade como autora. É um exercício constante. Para poder criar, há que se permitir tirar a roupagem que nos deixa arrumados e apresentáveis. Há que deixar aflorar o que vem de dentro, sem deixar que o editor queira trabalhar junto e acabe minando o que ainda está nascendo, tomando forma e se consolidando. O editor, naturalmente, pensa no público-alvo. Já para o escritor, é bom que não o faça.
LabPub – A gente aqui na LabPub fala tanto para quem já está no meio editorial e busca aprimoramento quanto para quem deseja começar a trabalhar na produção de livros. Tendo isso em mente: Apesar de toda nebulosidade que este momento de crise sanitária traz, o que você vislumbra para esse nosso mundo do livro nos próximos anos? Que conselho daria a quem deseja trabalhar no meio: buscar trabalho fixo ou variados freelas?
Dulce Seabra – Bem, o momento é delicadíssimo e vem se somar a dificuldades por que já passávamos. Mas, como dizia o poeta, o mundo é feito de mudança:
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
(…)
Luís de Camões
Cabe a nós acompanharmos as mudanças e estarmos aptos a produzir livros, sejam eles em papel ou digitais, e a encontrar novas soluções. Os livros sempre farão parte das nossas vidas, e o campo é enorme. Temos crianças, jovens e adultos que sempre irão ler, seja por prazer, para estudar, se informar. Tenho convicção de que cada vez mais vamos trabalhar com materiais digitais e conteúdos que poderão ser acessados de diferentes maneiras. Como editores, precisamos agregar o conhecimento prévio daqueles tantos que profissionalizaram a edição, com o que as novas tecnologias nos proporcionam. Cabe a nós nos mantermos atualizados e de mente aberta.
Especificamente quanto à questão de trabalho fixo ou freelas, pela minha experiência, vejo os freelas podendo ser a porta de entrada para um trabalho fixo. Isso aconteceu comigo várias vezes, tanto para eu ser admitida num trabalho, como para eu contratar alguém para minha equipe. A formação que se dá no dia a dia em uma empresa é fundamental para termos profissionais mais completos, que aprendem com os que têm mais experiência e podem ter acesso a outros departamentos, passando a conhecer assim as várias etapas da feitura de um livro. Mas nem sempre essa é a realidade possível. Então a questão não seria escolher entre freela ou fixo. Vale qualquer um. A questão é tentar de tudo para entrar na área, se é isso que se quer. Se for freela muito bem, se for fixo, também será muito bom, mas o importante é tentar aprender ao máximo, buscar informação, referências, se atualizar, não pensar que domina esse conhecimento, porque essa busca é diária e constante. Enfim, uma vez que se opta pelo trabalho com livros, essa paixão passa a correr nas veias. E é muito prazeroso, pode ter certeza!