Ameaças e saídas debaixo do mesmo teto
A editora Quelônio une tecnologias do passado e atuais para fazer livros de muita personalidade. A indefinição desses tempos só poupam uma certeza: o conteúdo salva.
O que é mais comum de ver no catálogo da editora Quelônio, de São Paulo, são livros absolutamente incomuns. Formatos, costuras, papéis, a impressão. As edições mesclam técnicas centenárias com a mais moderna tecnologia, na busca de imprimir o que os livros pedem, não padrões pré-determinados. Você vai dizer que a editora, portanto, é única e não serve tanto de inspiração para outros empreendimentos no meio editorial. Mas é o contrário. Justamente por essa característica, ser tão própria, torna-se um modelo de negócio para editores em qualquer lugar do país, como comenta o publisher Bruno Zeni. As tiragens pequenas e a relação personalizada com os autores tornam possíveis edições que talvez não fossem viáveis em tiragens maiores. Mas na entrevista a seguir, Zeni generosamente também compartilha suas dúvidas: se as pessoas por muito tempo não puderem se juntar em eventos públicos, como ficará a venda de livros físicos como os que produz? Não deixe de notar a importância que ele enxerga, ainda mais nesse cenário, dos conteúdos bem pensados por autores e editores: a saída do xeque.
LabPub – Na sua avaliação, o tipo de impressão e acabamento especiais que a Editora Quelônio apresenta pode ser uma opção para outros editores pelo Brasil? Ou é uma vivência muito específica mesmo, não um modelo?
Bruno Zeni – O modelo da Quelônio alia diferentes técnicas de impressão e de acabamento, com pequenas tiragens e cuidado especial com texto e design. Nossa linha editorial é especializada em literatura brasileira contemporânea. Além disso, temos a disposição de fazer livros sempre diferentes. Não por maneirismo, mas por entender que alguns livros pedem formatos específicos e projetos singulares. Nesse sentido, é um modelo simples, aberto e acessível, que pode ser tomado como referência. Nossa marca mais conhecida é o uso de material tipográfico combinado com tecnologias de trabalho e impressão mais contemporâneas, tudo sob a coordenação gráfica de Sílvia Nastari, nossa editora de arte. Nós privilegiamos a tipografia tradicional, que está na origem da tecnologia do livro, uma tecnologia que ainda sobrevive, mesmo que tenha se tornado obsoleta comercialmente. Nosso trabalho com o resgate da tipografia foi uma iniciativa da Sílvia, e tem a ver com uma vontade de explorar a técnica mais antiga ligada à impressão mecânica do texto. O que prezamos é a qualidade que ela fornece, a beleza e a elegância dos tipos e ornamentos tipográficos, o prazer do trabalho manual de composição, um design e uma manufatura que têm cinco séculos de tradição. Tudo isso é história e é prática atual (ainda é possível comprar famílias tipográficas, clichês antigos e novos, encontrar profissionais experientes nesse campo). Não é bonita essa aliança entre passado e presente, entre memória e desejo de futuro? Isso é algo que a literatura faz constantemente, que é a sua própria essência e razão de ser. Mas voltando a sua pergunta, o modelo, repito, é aberto, isto é, fazemos livros como sempre se fez: projetando o objeto a partir de suas partes constitutivas, como papel, formato, costura, tinta, mancha de texto. A impressão é um desses elementos. Pode ser tipografia, mas pode ser outro tipo: serigrafia, xilogravura, carimbo, risografia, off-set, impressão digital.
LabPub – Como está a Quelônio neste momento de crise mundial? Que medidas você pode revelar que tenha tomado para proteger a editora como negócio?
Bruno Zeni –A Quelônio está apreensiva. Continuamos trabalhando nos livros já contratados e que estavam em estágio avançado de produção. Mas os novos livros ainda avançam lentamente, pois não há perspectiva de retomada da vida cultural e literária tal como a conhecíamos (eventos, lançamentos, leituras, saraus, feiras). Dependemos muito dos eventos de lançamentos, pois trabalhamos com literatura brasileira contemporânea e com o potencial pessoal de cada escritor(a). Sem lançamentos, onde vendíamos boa parte da tiragem e cobríamos os custos de edição, dependeremos mais das vendas pós-lançamento (o que seriam os lançamentos agora? lives?, posts de redes sociais?), ou talvez até vendas sem lançamento, pulverizadas e mais incertas. A procura pelos livros ainda se mantém, e o hábito da leitura talvez ganhe um pouco mais de vigência e razão de ser, já que há muitas pessoas em casa (felizmente) se cuidando e inventando novas ocupações. Espero que a leitura seja uma dessas novas ou antigas atividades que ganhem reforço e prestígio. Mas não sei, o Brasil sempre pode nos surpreender negativamente, não é mesmo? É o que temos visto nesse período de pandemia, em que muitos desdenham do isolamento e dos cuidados preventivos. Em todo o caso, se a leitura se fortalecer como prática (o que depende também de incentivo e programas governamentais/ educacionais/ culturais), os e-books tendem a finalmente decolar. E estamos avaliando como tornar a nossa editora, que é bastante artesanal e ligada à materialidade do livro, também uma editora interessante na plataforma digital. Felizmente, parte desse desafio é muito bem atendido pelos nossos autores e autoras. Qualidade de texto e de projeto (editorial, filosófico, estético, gráfico) já é meio caminho andado. Não tomamos medidas muito concretas, estamos avaliando algumas possibilidades. Já fizemos alguns e-books, talvez façamos mais.
LabPub – Se tiver lançamentos à vista, fique à vontade para nos contar, por favor.
Bruno Zeni –Lançamos três livros este ano, “Devastação”, poemas de Tânia Ralston, “Maboque”, romance de Tina Vieira, e “Mulher assimétrica”, uma autoficção de Maria Luiza Corrêa. Além deles, temos no prelo o romance “Matraca”, de Isabel Série, e as crônicas de “Mãeternidade”, de Anna Brockes, além da reimpressão dos contos de “Senão eu atiro”, de Leusa Araujo. Estamos trabalhando em mais dez livros para este ano. Mas ainda não sabemos como ficará o cronograma. Nossa tipografia está parada, pois nossos colaboradores mais experientes da área (o tipógrafo João Darc Morais e o linotipista George Dimitrov Assis) estão em quarentena. E a Julia Estronioli, que faz as costuras e outros acabamentos, está trabalhando de casa, mas em ritmo bem menor. Alguns livros, que seriam feitos em tipografia, estamos avaliando se adiamos os livros em tipografia ou se os fazemos com impressão convencional. É o caso de um belo livro de poemas como o de Prisca Agustoni, “Mundo mutilado”, que estamos começando a editar. A perspectiva para este ano é ainda bem nebulosa, mas a situação está mudando muito rápido e quem sabe com o desenvolvimento da vacina e algum tratamento mais comprovado possamos retomar os trabalhos e reinventar os livros que não puderem mais ser feitos como gostaríamos.