A inscrição em programas governamentais como gestão de projeto
O mercado editorial assistiu recentemente, um tanto atônito, a um verdadeiro pandemônio, e esse pandemônio teve nome: PNLD 2018 Literário.
Depois de descontinuar o PNBE – Programa Nacional Biblioteca na Escola, em 2014, e deixar de adquirir obras de literatura para a rede de escolas públicas, o MEC – Ministério da Educação e Cultura, finalmente lançou um edital, de caráter transitório, voltado especificamente a esse tipo de obra, chamado de PNLD 2018 Literário.
Desde o início de abril, quando se lançou o edital, até a conclusão da etapa de inscrição das obras, os questionamentos foram quase diários, entre editores, dos editores ao FNDE – Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – órgão responsável pela gestão do programa em colaboração com a Secretaria de Educação Básica (SEB) e com a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI) – e entre editoras e entidades de classe, notadamente CBL – Câmara Brasileira do Livro e Abrelivros – Associação Nacional de Editores de Livros Escolares.
E isso se deveu, primeiramente, ao fato de ser o primeiro edital destinado a obras literárias através desse sistema, com a metodologia e o modus operandi utilizados pelo FNDE para o processo de avaliação e aquisição de livros didáticos. Pelo ineditismo, por seu caráter transitório e, talvez, pelo pouco tempo que o FNDE teve para prepará-lo, o edital propriamente dito continha exigências não aplicáveis a tal gênero de obras, herdadas indevidamente dos editais dedicados a obras didáticas, como, por exemplo, a obrigatoriedade de comprovação da formação acadêmica dos autores.
Além disso, a limitação quanto aos formatos admitidos e a obrigatoriedade de apresentação de material de apoio destinado a professores teve repercussão bastante negativa, principalmente junto às editoras independentes e de menor porte. Reivindicações dos editores foram atendidas pelo FNDE através de retificações ao edital – a última delas, inclusive, publicada depois do encerramento da etapa de inscrição, deixando, novamente, dúvidas. Afinal, os critérios para avaliação das obras inscritas e entregues serão os determinados por qual versão do edital?
Seja como for, junto com a esperança de que a retomada de tais compras tenha caráter permanente, ficam lições importantes para o mercado editorial como um todo, e para as editoras independentes, em particular. Faço essa menção específica em função de as editoras de maior porte e as que operam no segmento de livros didáticos contarem com pessoas e, às vezes, equipes inteiras dedicadas a tais processos, que acompanham sua evolução ao longo do tempo, conhecem seu funcionamento. Ou seja, desenvolveram tal expertise e estão mais preparadas para enfrentar os desafios que eles impõem, mesmo no caso de um edital particularmente problemático como foi esse PNLD 2018 Literário.
Como pude vivenciar em minha experiência profissional dentro de editoras de maior porte, inclusive dois grandes grupos do segmento de obras didáticas, tais programas governamentais são gerenciados como projetos, com as várias áreas atuando em conjunto, cada uma com suas atribuições e responsabilidades, mas absolutamente alinhadas sob a batuta de um ou mais líderes. As editoras menores, com suas estruturas mais enxutas, têm – pelo menos em tese – condições até melhores de estabelecer uma dinâmica que garanta êxito no atendimento a programas governamentais. Desde que assimilem que é, de fato, um projeto da editora.
Nosso escritório atendeu a demandas de várias editoras no processo de inscrição nesse primeiro PNLD Literário e, no curso de nosso trabalho, evidenciamos boas práticas, mesmo dentre as menores e sem tradição na participação em tais certames, enquanto outras ainda carecem de organização e preparo para que possam encarar um projeto dessa natureza. Dentre as lições que ficam, destacamos etapas absolutamente críticas, cuja observação é fundamental. São elas:
1º Ler o Edital
2º Ler o Edital
3º Ler o Edital – parece óbvio; mas, em minha interação com representantes de editoras durante esse processo, ficou evidente que muitas não o fazem, ou não fazem como deveriam. Não se trata de uma pessoa – tipicamente o “dono” ou o publisher – ler o edital, mas sim de todas as áreas envolvidas tomarem conhecimento do processo, das exigências, dos prazos, dentre outros aspectos. É óbvio que os editores estudarão mais a fundo o tipo de obra, o segmento de ensino a qual se destina, as características editoriais, etc, enquanto o produtor gráfico focará nas especificações técnicas, mas é vital que todos tenham consciência do todo.
4º Verificar se sua empresa está habilitada a participar de licitações públicas através de registro no SICAF (*). Importante observar que, dentre as certidões que compõem o registro, há algumas que vencem em prazo inferior ao da validade do mesmo. É essencial que o registro no SICAF se mantenha atualizado durante todo o prazo de vigência do programa.
5º Analisar o catálogo para verificar se há títulos que atendam aos requisitos do edital e, em caso positivo, os que têm maior chance de êxito em função dos parâmetros determinados pelos órgãos gestores do programa em questão.
6º Considerar as alterações que serão necessárias para que a edição atenda às exigências do edital, providenciar ISBN e ficha catalográfica.
7º Identificados os títulos que se deseja inscrever, verificar se os contratos firmados com autores, ilustradores e tradutores atendem a todas as exigências do edital, providenciando aditivos e/ou declarações para sanar eventuais faltas e traduções juramentadas no caso de contratos emitidos em língua estrangeira.
8º Checar se as características gráficas (papel de capa, de miolo, acabamento) estão de acordo com o determinado no edital, bem como planejar o que for necessário para a produção de “bonecos” e outros materiais destinados à avaliação.
9º Analisar os requisitos de acessibilidade estabelecidos no edital e analisar formas de atendê-los caso o título seja aprovado.
10º Não perder de vista em momento algum os prazos estabelecidos para cada etapa do edital, e manter os dados de contato e login atualizados no SIMEC (*) ao longo de todo o processo.
Para finalizar, destaco uma consequência positiva proporcionada pela integração do processo de aquisição de obras literárias ao padrão estabelecido para as obras didáticas e que, em meu entender, foi pouquíssimo destacado nas discussões acerca do PNLD 2018 Literário. Ao contrário do que ocorria no PNBE, em que acervos eram formados por comissões de especialistas e enviados às escolas, o novo processo abre espaço para a escolha descentralizada dos títulos, que permitirá que os professores escolham as obras que julgam mais adequadas à realidade sócio-econômica-cultural de seus alunos e, consequentemente, terá a capacidade de atingir a chamada bibliodiversidade.
Programas governamentais de aquisição de livros têm o poder e a capacidade de oxigenar o mercado e podem significar a sobrevivência de muitas editoras, principalmente em períodos de retração e inadimplência do setor livreiro como o que se atravessa. Agora só nos resta torcer e lutar por sua permanência e para que o novo processo de escolha represente um avanço real também para os alunos da rede pública de ensino.
* Segundo glossário do Edital do PNLD 2018 Literário:
SICAF: registro cadastral oficial do Poder Executivo Federal que tem como finalidade cadastrar e habilitar pessoas interessadas em participar de licitações realizadas por órgãos/entidades federais e acompanhar o desempenho dos fornecimentos contratados. Seu acesso é realizado por meio da rede de teleprocessamento do Governo Federal.
SIMEC: o Sistema Integrado de Monitoramento Execução e Controle do Ministério da Educação é um portal operacional e de gestão do MEC, que trata do orçamento e monitoramento das propostas on-line do Governo Federal na área da educação.
Sintia Mattar é sócia-diretora da Trevisan | Mattar Consultoria em Direito Autoral, que assessora e presta serviços a editoras e outras empresas da indústria criativa. É especializada em Copyrights pela Harvard Law School, em Direito Autoral pela Associação Paulista de Direito Autoral-ASPI, e graduada em Administração de Empresas pela UnG-Universidade de Guarulhos. Participa de estudos ligados a propriedade intelectual desde 1995 e conta com mais de 20 anos de atuação no segmento editorial. É professora exclusiva da LabPub nas disciplinas de Direito Autoral.