Distração
Um gato morto! O infeliz foi atropelado enquanto caminhava apressadamente para mais uma orgia no telhado do vizinho.
Isadora observou pela janela de seu apartamento o tal incidente. Incidente e não acidente. Foi bem proposital a atitude do motorista: fingiu que não viu, fingiu que ia parar, mas não fingiu quando partiu sem olhar pelo retrovisor o bichano esmagado.
Coitado do gato? Não acredito, e tampouco Isadora acreditava. Ela, uma senhora conservada com seus 69 anos, adora gatos. Mora sozinha em um apartamento grande e bem localizado no centro da cidade. Sozinha com 7 gatos. Sem contar os forasteiros que vêm e vão e os gatos de outras pessoas que cuida diariamente.
Sua casa está sempre cheia. Cheia de animais e vazia de corpos humanos desfilando por ali. Os poucos corpos que aparecem são apenas dos donos que buscam suas crianças peludas.
Não teve filhos. Nunca foi casada. Mas teve um amor de verão que aconteceu no inverno de sua vida. Sua esperança foi morta ainda criança. Um passado violento, cheio de traumas e karmas, deixou aberta uma ferida que jamais será fechada.
Não é casada com Deus. Tem pavor dessa palavra “Que Deus o quê, minha filha?”, sempre fecha a cara e vira as costas como se fugisse do diabo.
Admira os mortos, isso é fato, ainda seguia observando o gato que fora atropelado e que ia sendo absorvido pelo asfalto frio daquela rua.
Outro gato surgiu. Todo safado, seduzindo quem o observava, caminhando no parapeito da janela onde Isadora estava. Ele, um devasso. Ela, toda pudica. Ambos tinham movimentos lentos e precisos. Mas só um tinha sete vidas. E só um já não tinha vida.
Suelen Araújo